os cantos das copleras em amaicha del valle
os cantos das copleras em amaicha del valle

Este livro apresenta uma etnografia sobre as performances musicais de cantoras calchaquíes anciãs, conhecidas como copleras, na Comunidade Indígena Amaicha del Valle (Província de Tucumán, Argentina).

Baseada em pesquisa musicológica realizada entre 2012 e 2015, esta obra analisa as epistemologias que orientam essas mulheres na feitura de seus cantos, desvelando como, orientadas pelo princípio da reciprocidade, dissolvem as fronteiras entre Natureza e Cultura, por meio destes agenciamentos voco-sonoros, informados pelas potências afectivas do território sociocosmológico que habitam e do qual elas próprias são propriedade indispensável.

Como herdeiras de uma genealogia do pensamento descolonial, as copleras são guardiãs de saberes que elaboram por meio do nexo estratégico entre lugar e pensamento e, desta posição, nos convidam a um exercício reflexivo para além da perspectiva sobre a música enquanto sons humanamente organizados, desafiando-nos a experimentar formas expandidas de ouvir o mundo ao nosso redor.

Através de seus cantares e trajetórias de vida, que reverberam desde um território historicamente marcado pelo colonialismo, as copleras apresentam questões sobre o poder da performatividade vocal, o devir dos corpos cantores e o sentido cosmopolítico de lugar, por uma perspectiva amaicheña-calchaquí.

UMA HISTÓRIA DE ENCONTROS, CANTOS E TERRITÓRIOS 

por Patricia Oliart (Universidade de Newcastle)

Há vários anos, fui visitar minha querida amiga Maria Elizabeth Lucas em Porto Alegre, onde ela leciona antropologia da música na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lá tive a oportunidade de conhecer um excelente e motivado grupo de seus estudantes, que reencontrei pouco tempo depois em uma reunião de antropólogos, em Montevidéu. Lá, assisti Ivan apresentar seu trabalho com as copleras de Amaicha del Valle, que agora se materializa neste livro belo e inspirador.

O livro é dedicado a mulheres que cantam (o que por si só já é um presente) e que, com suas canções e seu trabalho, produzem seu território e sua identidade, atentas ao seu tempo e às relações e interpelações de seu ambiente, cada vez mais complexo. A escrita consistentemente reflexiva de Ivan nos guia pelas condições e possibilidades que alimentaram sua etnografia e sua interpretação das práticas musicais das copleras. Ivan faz uma revisão atenta e respeitosa da produção acadêmica precedente sobre os cantos copleros e a região do Noroeste Argentino e, com modéstia e criatividade, apresenta os aspectos inovadores de seu trabalho de forma clara e enriquecedora.

As questões inescapáveis das diferenças culturais, geracionais e de gênero são discutidas de forma complexa e consistente ao longo do texto, e seu trabalho pessoal para abordar as possibilidades de comunicação e tradução da experiência etnográfica habita essas diferenças com conforto e honestidade, fazendo deste tema uma oportunidade de reflexão política de seu trabalho.

As ferramentas teóricas estão inseridas em uma estrutura conceitual cuidadosamente elaborada que reúne o conhecimento acumulado da antropologia da música com a revisão ativa e crítica de conceitos e debates recentes nas ciências sociais. E é nessa maneira contemporânea e reflexiva de abordar as copleras que o lugar central do livro é ocupado pelo processo de produção de conhecimento em colaboração com as próprias cantoras. Ivan nos oferece, então, as teorizações elaboradas pelas copleras, sua sensorialidade e o significado de sua prática, em diálogo aberto e problematizado com seu próprio trabalho de interpretação e organização de seus registros etnográficos.

Há um ato político deliberado ao ouvir e escrever sobre essas práticas, teorizando com as copleras de Amaicha sobre as relações entre a emissão da voz e o território, sobre a relação entre seus corpos, suas gargantas e seu ambiente, que inclui outros seres, prestando atenção aos processos de nomeação das coisas e refletindo sobre a relação entre corporeidade, território, expressão e representação.

Por meio de suas conversas sobre canto, observação etnográfica e o ato de caminhar, aprendemos a entender as maneiras pelas quais as copleras se nomeiam de acordo com sua interação ou relacionamento com outros povos, a partir de seus próprios sentimentos e entendimentos.

Ivan faz o difícil trabalho de capturar a complexa rede de relações e interpelações da qual as copleras participam e nos leva de forma convincente ao terreno fundamental para o feminismo indígena contemporâneo, que vincula politicamente os corpos das mulheres indígenas a seus territórios. Por meio da reconstrução das instâncias e dos lugares em que elas cantam, também aprendemos sobre o fato de ser diaguita calchaquí como uma identidade complexa, que deve negociar suas representações, visibilidade e reconhecimento com as formas pelas quais o Estado classifica e enquadra suas expressões culturais, com equívocos e maus-tratos.

Há algumas décadas, temos questionado as formas de realizar trabalhos etnográficos em que a atividade de conhecer diferentes formas de estar no mundo assume a forma de uma "tradução" de uma cultura para outra. Mas não é tão fácil integrar essa crítica à prática da pesquisa, e menos ainda garantir que a escrita reflita, de forma clara e complexa, como os processos de coprodução de conhecimento têm um efeito transformador, tanto no pesquisador quanto naqueles que recebem o pesquisador e decidem colaborar com ele. A solvência teórica e a honestidade intelectual de Ivan possibilitam que esse processo transformador seja registrado com grande habilidade e de forma didática e generosa, tornando esse exercício uma das principais contribuições do livro. Ao refletir sobre os problemas de tradução e representação de forma aberta e transparente no processo de pesquisa e escrita, Ivan nos permite ver como ele toma decisões para sua interpretação, prestando atenção em seus afetos e nas formas como o relacionamento com os cantores impacta em seu pensamento e sentimento. Só posso ser grato por essa combinação poderosa e esperançosa de atenção, presença e generosidade neste livro.

OS CANTOS DAS COPLERAS EM AMAICHA DEL VALLE